Filme premiado em Veneza quebrou paradigmas e incomodou
autoridades.
Uma associação possível de ser feita ao se assistir Em Jerusalém, de David Perlov, é com o
experimental e fundamental clássico russo O
Homem com a Câmera, de Dziga Vertov. Ambos filmes retratam o cotidiano de
uma cidade, da alvorada ao crepúsculo. Ambos são construídos de forma pouco
ortodoxa, sem uma linha narrativa e bastante fragmentados. Ambos evocam
simbolismos de múltiplas interpretações.
Engana-se, porém, quem considerar um filme como consequência
direta do outro. As influências de Perlov estão muito mais na nouvelle vague do que no construtivismo
russo. Mas mesmo isso é uma simplificação.
Em Jerusalém
inaugura o moderno cinema israelense. No catálogo da mostra David Perlov: Epifanias do Cotidiano –
em exibição na Cinemateca e no Cinusp até o dia 31 – há um texto no qual o
crítico israelense Uri Klein conta o que sentiu quando viu o filme pela
primeira vez: “Tive a impressão de que o cinema israelense estava nascendo
diante dos meus olhos”. A declaração é o sintoma preciso do efeito que o filme
de Perlov causou em sua época.
Original, provocativo, crítico, inovador, desconstrutivo. Um
dia na cidade de Jerusalém, em 1963, nos revela suas singularidades e
semelhanças em relação a outras cidades. Como em qualquer lugar, crianças
reunidas perto de uma escola provocam os passantes na tentativa de irritá-los e
constrange-los com uma inocência típica de infância travessa. Mas esse “comum”
do cotidiano se mistura à pobreza, ao religioso e à segregação de um muro que
divide a cidade. São fissuras, ruínas por baixo de novas edificações. Reais e
simbólicas.
Pelas fissuras do muro vê-se o outro lado. Esse confronto
revela, entre o que se mostra e o que se espia, o proibido, o oculto; uma certa
vergonha, um concreta realidade. É o contraste, a divisão, a cizânia. Perlov
expõe a realidade das pessoas que vivem na cidade e ao fazê-lo a coloca no
patamar do comum, com problemas sociais, desigualdades e comezinhos diários.
Jerusalém, mito de um ideário sionista na construção do novo Estado, é isso.
Pontuando cada passagem, uma cena se repete. O martelar
constante de um cinzel lapidando uma pedra. Simbolismo que remete à lapidação
do próprio Estado de Israel, nascido nas montanhas em meio ao deserto. Ali está
um a pedra imperfeita que tanto custa polir, esmerar. O martelar insistente do
trabalhador é a obstinação do povo de Israel em fazê-lo e ao mesmo tempo o
quanto há por ser feito.
Perlov fragmenta seu filme para desnudar sem compor linhas,
sem tecer comentários. É imagem sobre imagem, uma seguida da outra. Leia-se as
entrelinhas. Esse desnude não tem intenções acusatórias, não são denúncias
explícitas de uma oposição frontal. O que quer Perlov é mostrar a cidade, com o
que ela tem de normal – crianças, velhos, lojas, ruas – e com o que tem de
exceção – um muro, uma divisão. Quer, sobretudo, uma desmistificação. Não por
acaso, filma frontalmente as pessoas na rua. Efeito que causou desconforto e
gerou polêmicas no status quo da
época.
Apesar de ter sido premiado no Festival de Veneza, tanta
inovação formal do filme não foi bem vista pelos dirigentes de Israel. Era uma
época de forte controle por parte do Estado, preocupado em criar uma imagem
positiva do país. Ao mostrar pobres e mendigos, Perlov estaria exibindo o
indigno e essa crueza da realidade não interessava ao governo. Naquele tempo,
todo o cinema de Israel tinha apelo propagandista e enaltecedor, sofrendo
considerável controle das comissões de cinema do governo. Um cinema repetitivo,
pouco criativo e nada relevante.
Ao ir contra a corrente, Perlov inicia não uma ruptura, mas
um confronto de visão estética e compreensão de arte. Como ele mesmo afirmaria
anos depois, queriam que filmasse ideias, mas ele queria filmar pessoas.
Os 33 minutos de Em
Jerusalém são os minutos iniciais de um cinema nativo israelense, de
verdadeiro caráter artístico e estético, repleto de originalidade, distopia e
verdade. Em sua estrutura, assenta-se um espírito crítico e renovador. Como
cinema, nasce do desejo de ser, acima de tudo, verdadeiro. Incorre, sim, em
artifícios, mas como componentes de uma desconstrução necessária, de uma
fragmentação que não desorienta, apenas humaniza. Evidencia, acima de tudo, a
característica primordial do cinema de Perlov: a sensibilidade aguçada e o
olhar questionador.
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