3.17.2011

"EM JERUSALÉM" É MARCO DO CINEMA ISRAELENSE

Filme premiado em Veneza quebrou paradigmas e incomodou autoridades.


Uma associação possível de ser feita ao se assistir Em Jerusalém, de David Perlov, é com o experimental e fundamental clássico russo O Homem com a Câmera, de Dziga Vertov. Ambos filmes retratam o cotidiano de uma cidade, da alvorada ao crepúsculo. Ambos são construídos de forma pouco ortodoxa, sem uma linha narrativa e bastante fragmentados. Ambos evocam simbolismos de múltiplas interpretações.

Engana-se, porém, quem considerar um filme como consequência direta do outro. As influências de Perlov estão muito mais na nouvelle vague do que no construtivismo russo. Mas mesmo isso é uma simplificação.

Em Jerusalém inaugura o moderno cinema israelense. No catálogo da mostra David Perlov: Epifanias do Cotidiano – em exibição na Cinemateca e no Cinusp até o dia 31 – há um texto no qual o crítico israelense Uri Klein conta o que sentiu quando viu o filme pela primeira vez: “Tive a impressão de que o cinema israelense estava nascendo diante dos meus olhos”. A declaração é o sintoma preciso do efeito que o filme de Perlov causou em sua época.

Original, provocativo, crítico, inovador, desconstrutivo. Um dia na cidade de Jerusalém, em 1963, nos revela suas singularidades e semelhanças em relação a outras cidades. Como em qualquer lugar, crianças reunidas perto de uma escola provocam os passantes na tentativa de irritá-los e constrange-los com uma inocência típica de infância travessa. Mas esse “comum” do cotidiano se mistura à pobreza, ao religioso e à segregação de um muro que divide a cidade. São fissuras, ruínas por baixo de novas edificações. Reais e simbólicas.

Pelas fissuras do muro vê-se o outro lado. Esse confronto revela, entre o que se mostra e o que se espia, o proibido, o oculto; uma certa vergonha, um concreta realidade. É o contraste, a divisão, a cizânia. Perlov expõe a realidade das pessoas que vivem na cidade e ao fazê-lo a coloca no patamar do comum, com problemas sociais, desigualdades e comezinhos diários. Jerusalém, mito de um ideário sionista na construção do novo Estado, é isso.

Pontuando cada passagem, uma cena se repete. O martelar constante de um cinzel lapidando uma pedra. Simbolismo que remete à lapidação do próprio Estado de Israel, nascido nas montanhas em meio ao deserto. Ali está um a pedra imperfeita que tanto custa polir, esmerar. O martelar insistente do trabalhador é a obstinação do povo de Israel em fazê-lo e ao mesmo tempo o quanto há por ser feito.

Perlov fragmenta seu filme para desnudar sem compor linhas, sem tecer comentários. É imagem sobre imagem, uma seguida da outra. Leia-se as entrelinhas. Esse desnude não tem intenções acusatórias, não são denúncias explícitas de uma oposição frontal. O que quer Perlov é mostrar a cidade, com o que ela tem de normal – crianças, velhos, lojas, ruas – e com o que tem de exceção – um muro, uma divisão. Quer, sobretudo, uma desmistificação. Não por acaso, filma frontalmente as pessoas na rua. Efeito que causou desconforto e gerou polêmicas no status quo da época.

Apesar de ter sido premiado no Festival de Veneza, tanta inovação formal do filme não foi bem vista pelos dirigentes de Israel. Era uma época de forte controle por parte do Estado, preocupado em criar uma imagem positiva do país. Ao mostrar pobres e mendigos, Perlov estaria exibindo o indigno e essa crueza da realidade não interessava ao governo. Naquele tempo, todo o cinema de Israel tinha apelo propagandista e enaltecedor, sofrendo considerável controle das comissões de cinema do governo. Um cinema repetitivo, pouco criativo e nada relevante.

Ao ir contra a corrente, Perlov inicia não uma ruptura, mas um confronto de visão estética e compreensão de arte. Como ele mesmo afirmaria anos depois, queriam que filmasse ideias, mas ele queria filmar pessoas.

Os 33 minutos de Em Jerusalém são os minutos iniciais de um cinema nativo israelense, de verdadeiro caráter artístico e estético, repleto de originalidade, distopia e verdade. Em sua estrutura, assenta-se um espírito crítico e renovador. Como cinema, nasce do desejo de ser, acima de tudo, verdadeiro. Incorre, sim, em artifícios, mas como componentes de uma desconstrução necessária, de uma fragmentação que não desorienta, apenas humaniza. Evidencia, acima de tudo, a característica primordial do cinema de Perlov: a sensibilidade aguçada e o olhar questionador.
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