3.17.2011

DA INFÂNCIA POBRE EM BELO HORIZONTE AO MODERNO CINEMA ISRAELENSE


Trajetória de David Perlov passa pela pintura impressionista, pela nouvelle vague e pela quebra de paradigmas.


Sua mãe era analfabeta e seu pai um mágico itinerante. Nascido no Rio de Janeiro de 1930, mas criado entre Belo Horizonte e São Paulo, David Perlov teve uma infância difícil no seio de uma família judia pobre. Nunca gostou de falar desse passado, que nas feições da breve memoração, ao se tocar no assunto, deixava entrever traumas e más recordações. Desse período seguramente doloroso, é recorrente em sua filmografia autobiográfica a lembrança de Dona Guiomar, sua mãe negra de criação. Mulher evangélica e extremamente supersticiosa, ela está quase sempre associada a medos e temores da infância. Mas também a uma afetividade generosa e singular.


Aos 10 anos, Perlov muda-se para São Paulo e passa a viver no bairro de Vila Mariana. Estudante de colégio público, atua em sua a adolescência nos movimentos sionistas socialistas. Sob influência do Impressionismo, interessa-se pela pintura e pelo desenho, tornando-se aluno de Lasar Segall.


Desenho de David Perlov
Em 1952, muda-se para a França com a intenção de dar continuidade aos estudos na pintura. Matricula-se na Escola de Belas Artes e torna-se aluno do artista Arpad Szenes. Contudo, os rumos formais e estéticos da arte nos anos 50 desagradam a Perlov, que passa a se interessar por cinema. Torna-se assistente de Henri Longlois, um dos fundadores da Cinemateca Francesa. Convive então com alguns dos nomes que, anos depois, seriam os pilares da nouvelle vague, movimento do cinema francês cuja influência se espalharia pelo mundo. Após ver o filme Zero em Comportamento (1933), de Jean Vigo, decide largar em definitivo a pintura e se dedicar ao cinema.


Primeiro filme
David Perlov finaliza seu primeiro filme em 1957. Tia Chinesa e os outros é um curta-metragem baseado em um caderno de desenhos encontrado no sótão da casa onde vivia Perlov. Os desenhos datavam de 1894 e foram feitos por uma jovem de 14 anos adoentada. Neles, a jovem destilava uma ácida crítica aos costumes da época e a alguns membros de sua família. Bem recebido pela crítica francesa, Tia Chinesa e os outros dá ao jovem cineasta alguma notoriedade.


Cena de "Em Jerusalém"
No ano seguinte, Perlov muda-se para Israel, onde passa a trabalhar em um Kibutz (comunidade agrária de caráter socialista muito comum durante a consolidação do Estado de Israel) com sua esposa Mira. Em 1962 ele realiza Em Teu Sangue, Vive, primeiro filme israelense a abordar a história do Holocausto. Inquieto, Perlov busca uma forma de cinema que não encontra no cinema de Israel. Influenciado pelos movimentos da nouvelle vague que desponta na França, quer explorar novos formalismos e estéticas.


Em 1963 lança Em Jerusalém, curta-metragem que apresenta a cidade de Jerusalém com um cotidiano de singularidades, pobrezas e segregações. O filme é premiado no Festival de Veneza daquele ano, mas é mal recebido pelo governo de Israel que, preocupado em construir uma imagem positiva da jovem nação, considera indigno a exposição de mendigos e miseráveis.


Isolamento
Isolado pelo governo, Perlov tem dificuldade em conseguir aprovação para seus projetos cinematográficos. Realiza alguns filmes, mas não se sente satisfeito com os rumos de seu cinema. É esse isolamento que o leva, em 1973, a comprar uma câmera e passar a filmar seu cotidiano e o cotidiano da cidade de Tel Aviv, onde reside. Dessa experiência formal, iniciada de impulso, surge o monumental Diário 1973-1983, obra-prima do diretor, considerado pela crítica como obra fundamental do cinema de documentário.


Ainda em 1973 é convidado a dar aulas no recém-criado departamento de Cinema e Televisão da Universidade de Tel Aviv. Foi também professor na Escola de Cinema Sam Spiegel, em Jerusalém. Sua experiência como professor foi essencial para o desenvolvimento de Diário 1973-1983.


No ano 2000 lança Diário Revisitado 1990-1999, um estudo ensaístico dividido em três partes: Infância Protegida, Rotinas e Rituais e Volta ao Brasil. A primeira parte trata da infância de seus netos, tão diferente de sua própria infância. O segundo episódio expõe a rotina policial e ritualística do cotidiano de Israel e a última parte relata seu retorno às cidades brasileiras de sua infância e juventude.


Durante sua vida, David Perlov realizou mais de 20 filmes e recebeu diversos prêmios, entre os quais o Prêmio Israel, único concedido a um cineasta. Veio diversas vezes ao Brasil divulgar seu trabalho e reencontrar amigos. Faleceu em dezembro de 2003.
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UM RECOMEÇO A PARTIR DO MEIO


Em Diário 1973-1983, David Perlov rompe com o cinema profissional e realiza obra máxima do registro cotidiano.


No campo das experimentações cinematográficas, muito já se produziu em autobiografias filmadas. Nenhuma, contudo, com a consistência e reflexão da obra de David Perlov. Em Diário 1973 - 1983, sua obra máxima, o diretor afirma logo no início: “O cinema profissional não me interessa mais”. Inicia-se ali uma jornada, um recomeço a partir do meio. Ao encerrá-la, 10 anos depois, Perlov teria reconfigurando grande parte da estrutura do cinema documentário.

Se na literatura o gênero da autobiografia sempre foi algo simples de entender e construir – deixando de lado, claro, questões sobre ego, verdade e parcialidade –, no cinema o gênero é, por excelência, estruturalmente problemático. Mais do que a subjetivação ou objetivação da lente de uma câmera, os efeitos de real podem ser atenuados ou intensificados na edição. Manipulados, por assim dizer.

Claro que na literatura também existe tal recurso. Mas quando ele se aplica a questões imagéticas, sabemos, desde as experiências de Kuleshov, o quanto seu efeito pode ser sugestionante.  A realidade, nesse caso, se subverte, se modifica e nos ilude. Perlov – filho de um ilusionista – talvez não fuja desse poder da edição. Mas ao invés de usá-lo como ilusão, prefere sintetizar sua sensibilidade poética, sua visão de cinema e sua busca pela memória do presente. Renega, portanto, desde o início, qualquer artificialismo, qualquer truque, apesar de gostar deles, como admite.



Ruptura
Diário 1973 – 1783 é o ponto de partida de uma ruptura. De uma busca por algo diferente, que o próprio Perlov não sabe o que é. Algo que se pretende construir com o tempo, experimentando limites, de câmera em punho, através da janela de um apartamento ou voltando-se para dentro do próprio apartamento. Inaugura ali o enquadramento da vida íntima, mas logo a inserirá no contexto da vida política do país. Em seu tatear por uma forma de cinema que intui, não planeja, descobre rápido o quanto o íntimo pode dizer sobre o público.

O experimento, que se torna projeto, que se torna obra-prima. Frustrado com a frequente recusa de seus projetos de cinema por parte do governo israelense, Perlov compra uma câmera. Gesto mínimo para um diretor de filmes. No início de Diário 1973-1983, suas primeiras palavras encerram com precisão tudo que se precisa saber sobre o filme: “Maio de 1973. Eu compro uma câmera 16 mm. Eu começo a filmar por mim mesmo e para mim mesmo. O cinema profissional não me interessa mais. Eu filmo dia após dia à procura de alguma coisa. Eu procuro, antes de tudo, o anonimato. É preciso tempo para aprender a fazê-lo”.

Dez anos depois, quando finaliza o projeto, talvez ainda esteja aprendendo. Sua hesitação diminui, mas nunca termina. Seu filme tem seis capítulos e um total de cinco horas e meia. O capítulo 1 engloba cinco anos; o capítulo seis, três meses. O tempo se distende e contrai ao longo de Diário 1973-1983, ganha conotações de memória, tem sempre algo de melancolia, mas sem o ranço do piegas. Perlov resgata a si mesmo do presente, a memória não é uma corrente que o aprisiona, é apenas mais uma janela através da qual observa. Há, claro, sentimento. Mas o sentimento transporta reflexão, entendimento e pacificação.

Enquadramentos
Todo enquadramento é uma janela, um recorte. Perlov busca refletir sobre isso filmando outras janelas, outros recortes. É a realidade do possível, dentro da subtração natural que implica todo enquadramento. Uma realidade própria, íntima, e por isso mesmo muito mais verdadeira e profunda. E ela está na janela de um apartamento, na janela de um trem que o leva a Paris (ou a Belo Horizonte), na janela de uma TV ligada. As verdades e memórias de Perlov perpassam seu cotidiano íntimo, o cotidiano casual da rua no anonimato dos passantes, a memória cotidiana, que faz Paris-Belo Horizonte uma simples e metafísica viagem de trem, ou no factual noticioso da vida do país na TV.

Diário 1973-1983 constrói essa realidade sem pretensões programáticas, ideológicas ou estéticas pré-concebidas. Sua estética primeira é a vida, as pessoas, o presente. Rejeita com veemência o cinema de conformação de Israel. Ressalta que não quer filmar ideias, quer filmar pessoas.

Nesse propósito e afinco, não deixa nunca de dar a dimensão histórica de seu filme e de seu tempo. Desde a Guerra do Yom Kippur, que eclode no início do primeiro capítulo, até a guerra com a Líbia a dimensão política nunca diminui. Mas Perlov não a abstrai ou dilui dentro de um macro universo de acontecimentos nacionais. Ela a humaniza, ele a personifica no rosto do manifestante da rua.

Reintera sua concepção de cinema e vida ao filmar a TV que filma a guerra. Diz que é a primeira vez que os pais podem ver seus filhos na guerra. Agora há os rostos dos soldados no campo de batalho, transmitidos ao vivo, diretamente para seus pais que os veem em casa.

Dez Anos
Dez anos de imagens condensadas em cinco horas e meia. O que poderia facilmente enveredar pela monotonia, redundância ou irrelevância, se torna um monumento poético, crítico e de uma substância gigantesca. Em tudo, o que mais salta aos olhos e ao sentimento é a sensibilidade de Perlov, sua capacidade de capturar o que a vida tem de dignificante na simplicidade e o que tem de fundamental no registro histórico. Seu paralelo público/privado se desconstrói e se cruza, se engalfinha com a vida e com sua verdade de beleza, tristeza, saudade, dor, revolta, indignação, esperança, crescimento e memória. Nunca é piegas, nunca é dissimulada. É vida, todo o tempo.

Passar pelas mais de cinco horas de Diário 1973-1983 não é uma simples travessia. É adentrar na experiência da memória e do afetivo. É transpor-se para além de um paradigma autobiográfico e encontrar uma nova forma e uma nova realidade. Não se trata de simples revolução, mas uma nova percepção. Uma janela aberta, pela qual olhamos para descobrir outras janelas. Janelas que nos levam a recortes do real, capazes de afetar nossa compreensão e nosso sentimento do mundo e da vida.
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"EM JERUSALÉM" É MARCO DO CINEMA ISRAELENSE

Filme premiado em Veneza quebrou paradigmas e incomodou autoridades.


Uma associação possível de ser feita ao se assistir Em Jerusalém, de David Perlov, é com o experimental e fundamental clássico russo O Homem com a Câmera, de Dziga Vertov. Ambos filmes retratam o cotidiano de uma cidade, da alvorada ao crepúsculo. Ambos são construídos de forma pouco ortodoxa, sem uma linha narrativa e bastante fragmentados. Ambos evocam simbolismos de múltiplas interpretações.

Engana-se, porém, quem considerar um filme como consequência direta do outro. As influências de Perlov estão muito mais na nouvelle vague do que no construtivismo russo. Mas mesmo isso é uma simplificação.

Em Jerusalém inaugura o moderno cinema israelense. No catálogo da mostra David Perlov: Epifanias do Cotidiano – em exibição na Cinemateca e no Cinusp até o dia 31 – há um texto no qual o crítico israelense Uri Klein conta o que sentiu quando viu o filme pela primeira vez: “Tive a impressão de que o cinema israelense estava nascendo diante dos meus olhos”. A declaração é o sintoma preciso do efeito que o filme de Perlov causou em sua época.

Original, provocativo, crítico, inovador, desconstrutivo. Um dia na cidade de Jerusalém, em 1963, nos revela suas singularidades e semelhanças em relação a outras cidades. Como em qualquer lugar, crianças reunidas perto de uma escola provocam os passantes na tentativa de irritá-los e constrange-los com uma inocência típica de infância travessa. Mas esse “comum” do cotidiano se mistura à pobreza, ao religioso e à segregação de um muro que divide a cidade. São fissuras, ruínas por baixo de novas edificações. Reais e simbólicas.

Pelas fissuras do muro vê-se o outro lado. Esse confronto revela, entre o que se mostra e o que se espia, o proibido, o oculto; uma certa vergonha, um concreta realidade. É o contraste, a divisão, a cizânia. Perlov expõe a realidade das pessoas que vivem na cidade e ao fazê-lo a coloca no patamar do comum, com problemas sociais, desigualdades e comezinhos diários. Jerusalém, mito de um ideário sionista na construção do novo Estado, é isso.

Pontuando cada passagem, uma cena se repete. O martelar constante de um cinzel lapidando uma pedra. Simbolismo que remete à lapidação do próprio Estado de Israel, nascido nas montanhas em meio ao deserto. Ali está um a pedra imperfeita que tanto custa polir, esmerar. O martelar insistente do trabalhador é a obstinação do povo de Israel em fazê-lo e ao mesmo tempo o quanto há por ser feito.

Perlov fragmenta seu filme para desnudar sem compor linhas, sem tecer comentários. É imagem sobre imagem, uma seguida da outra. Leia-se as entrelinhas. Esse desnude não tem intenções acusatórias, não são denúncias explícitas de uma oposição frontal. O que quer Perlov é mostrar a cidade, com o que ela tem de normal – crianças, velhos, lojas, ruas – e com o que tem de exceção – um muro, uma divisão. Quer, sobretudo, uma desmistificação. Não por acaso, filma frontalmente as pessoas na rua. Efeito que causou desconforto e gerou polêmicas no status quo da época.

Apesar de ter sido premiado no Festival de Veneza, tanta inovação formal do filme não foi bem vista pelos dirigentes de Israel. Era uma época de forte controle por parte do Estado, preocupado em criar uma imagem positiva do país. Ao mostrar pobres e mendigos, Perlov estaria exibindo o indigno e essa crueza da realidade não interessava ao governo. Naquele tempo, todo o cinema de Israel tinha apelo propagandista e enaltecedor, sofrendo considerável controle das comissões de cinema do governo. Um cinema repetitivo, pouco criativo e nada relevante.

Ao ir contra a corrente, Perlov inicia não uma ruptura, mas um confronto de visão estética e compreensão de arte. Como ele mesmo afirmaria anos depois, queriam que filmasse ideias, mas ele queria filmar pessoas.

Os 33 minutos de Em Jerusalém são os minutos iniciais de um cinema nativo israelense, de verdadeiro caráter artístico e estético, repleto de originalidade, distopia e verdade. Em sua estrutura, assenta-se um espírito crítico e renovador. Como cinema, nasce do desejo de ser, acima de tudo, verdadeiro. Incorre, sim, em artifícios, mas como componentes de uma desconstrução necessária, de uma fragmentação que não desorienta, apenas humaniza. Evidencia, acima de tudo, a característica primordial do cinema de Perlov: a sensibilidade aguçada e o olhar questionador.
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3.16.2011

MOSTRA DE FILMES TRÁS OBRA FUNDAMENTAL DO CINEMA ISRAELENSE

Mostra David Perlov: Epifanias do Cotidiano exibe filmes do diretor brasileiro considerado pela crítica o mais influente do cinema de Israel.




De 17 a 30 de março a Cinemateca Brasileira recebe a mostra David Perlov: Epifanias do Cotidiano. Composta por ciclo de filmes, debates e oficina, a mostra vem divulgar uma das obras mais importantes do cinema de documentário. David Perlov, brasileiro que se radicou em Israel em 1958, é considerado o precursor do cinema moderno israelense e um dos principais documentaristas do cinema mundial.

O evento contará com a presença de Mira Perlov, viúva do diretor e produtora de alguns de seus filmes. Mira participará de um debate no dia 19, na Cinemateca, ao lado do jornalista Alberto Dines, com mediação de Ilana Feldman, curadora da mostra. Também será realizada uma oficina no Cinusp “Paulo Emílio”, na Cidade Universitária. A oficina será ministrada pelo professor Reuven Hecker, diretor do curso de cinema e televisão da Universidade de Tel-Aviv e que foi fotógrafo e produtor de David Perlov.

Na programação da mostra estarão os principais filmes de Perlov. Produções como “Tia Chinesa e os Outros”, de 1957, seu primeiro filme, e “Em Jerusalém”, curta-metragem de 1963 considerado um marco do documentário israelense. O maior destaque, no entanto, será a exibição de “Diário 1973-1983”, a obra-prima do diretor. O filme, de mais de cinco horas de duração e divido em seis capítulos, será exibido em sessões de três partes, cada uma com dois capítulos.
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Serviço:
David Perlov – Epifanias do Cotidiano
Data: de 18 a 30/3
Preço: R$8 ou R$4 (meia-entrada)
Tel.: : (11) 3512-6111
Mais informações: http://www.cinemateca.com.br/

 
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